“Desde que me lembro sinto que nunca pertenci cem por cento a algum lugar” – nëss
No vídeo-retrato realizado por Maria João Bilro, nëss é apresentado nesta primeira edição da Em.foco como um olhar para o futuro. Singer e songwriter baseado em Lisboa, nëss contém a força que torna as imagens melancólicas em que é filmado num espaço vivo de aceitação de um mundo ainda pouco receptivo à não-normatividade.
Maria João Bilro comenta-nos que tentou “explorar a complexidade do que é ser-se uma pessoa birracial e não-binária, que ao longo da sua vida teve sempre lutas constantes no espectro da pertença e normalização da sua identidade”.
A caminhar para o final do vídeo-retrato, nëss canta uma das suas músicas e eleva as imagens para um patamar onírico; talvez sejamos transportados por instantes para o seu mundo. A intenção da realizadora foi de retratar a música de nëss como “um refúgio seguro e um modo de expressar os mais profundos sentimentos, quando não o conseguia fazer de qualquer outra forma”.
É este o primeiro vídeo-retrato da revista Em.foco. Nëss, por Maria João Bilro.
Conversa com Maria João Bilro
1) Escolheste quase imediatamente nëss para retratar. Já o conhecias antes desta proposta da emfoco para realizares o vídeo da primeira edição?
Quando vocês me falaram que o foco começaria idealmente por artistas emergentes, e que poderia incluir qualquer área artística, ainda pensei um pouco como dar a volta, encontrar algum artista dentro daquilo que eu queria retratar que não fosse do meu mundo – artes visuais ou música -, mas não consegui. Então foi numa conversa com a Filipa, minha namorada, que disse que me fazia mesmo sentido retratar alguém da música, porque é uma arte que vive muito dentro de mim. Mas todos os artistas que conhecia, e que podiam encontrar-se dentro do contexto de artista emergente, não me representavam da forma que eu queria em termos de identidade; queria, mais especificamente, alguém da comunidade queer, porque sinto-me sempre muito melhor representada. Sinto-me mais em casa quando estou dentro desse seio, porque existe uma abertura de mentalidades, um carinho mesmo muito específico e muito menos julgamento. Há muita vontade também de aprender e de ensinar. E pronto, foi nesse sentido, na busca de um artista músico queer, que a Filipa me falou de nëss. Ouvi uma entrevista que ele tinha feito há uns anos, que me deu a conhecer mais traços de identidade do que propriamente da música, mas que eu também gostei. Depois dessa entrevista contactei-o e ele alinhou quase automaticamente. Tivemos umas conversas, andei um bocadinho atrás dele, mas acabou por correr bem e funcionar. E clicámos no início. Acho que as nossas personalidades são mesmo muito parecidas, então foi tudo assim feito para acontecer.
2) E como foi ir descobrindo cada vez mais nëss?
Ir descobrindo nëss foi muito reconfortante. Acho que é a palavra que mais descreve o que sinto. Sabes daquelas pessoas que tu conheces e que tens quase automaticamente uma compreensão, um à vontade e um bem-estar muito imediatos? Eu sinto que isso aconteceu connosco, muito também pelo nível de entusiasmo que tanto eu como ele estávamos a ter em relação ao vídeo. Mas também por existir muita transparência. Acho que ambos somos diretos e sem tabus em falar sobre algumas coisas que ainda não são abordadas de uma forma tão direta socialmente. Está a melhorar, I mean, mas há muitos temas, assuntos, que não são abordados nem sequer em conversas de café com amigos. Portanto foi muito bonito perceber também que nos encaixávamos dessa forma. De gostarmos de refletir e de olhar para o passado e falar sobre ele sem medos.
3) Nota-se do teu lado um cuidado comovente de nunca sobrepores a tua voz à presença de nëss. Sente-se essa tua vontade de lhe dares palco, voz, foco…
Para mim o mais importante era que o palco fosse de nëss. Claro que partilhado comigo, mas o foco neste vídeo é o artista. E é claro que eu vou fazer de tudo para o elevar, dentro da minha estética. Mas o palco é dele. E foi nesse sentido que eu quis mesmo filmar em locations que são muito importantes para ele. São sítios em que nëss cresceu e onde viveu também a sua adolescência. Entre Mercês e Odivelas, porque os pais estão separados. Então houve sempre aquela polaridade de subúrbios, que o marcaram também muito. E nós fomos visitar esses sítios.
Foi muito curioso, no último dia de filmagens, por exemplo. Fomos para um lugar onde nëss tinha estudado no secundário. Era uma escola no meio do campo, perto de Sintra, onde parece que estás no centro do país, numa zona super tranquila. Parece uma aldeia, só se viam cabras e vaquinhas. E foi super fixe. Mesmo nëss disse “fogo, a sério, já não vinha aqui há anos. Está a ser mesmo bom.” E foi incrível também poder proporcionar isso e ir lá com ele.
4) Uma curiosidade: porquê a utilização de super8? Esteticamente resulta muito bem a mistura com o digital. Mas tinhas alguma outra razão para além da estética?
Muito estético e conceptual. Para mim super8 ou qualquer outra câmara de filme remete-me para filmagens caseiras, para algo super íntimo e pessoal. Acho que é sempre muito gratificante filmar em super8, especialmente neste tipo de projetos de filmes, porque geralmente existe um limite de cartuchos, e por isso qualquer coisa que se filme vai ser espontânea, não vai dar para repetir. É mais difícil também de fingir. Além de que para mim é das formas mais interessantes de ver as pessoas, porque é tão engraçada a dicotomia da nossa modernidade. Num mundo moderno e contemporâneo onde existe já tanta tecnologia, retratá-lo através de uma lente analógica, uma lente antiga, traz uma poesia muito especial e dá um toque de nostalgia. Que é algo que caminha sempre comigo.
5) Outra curiosidade: o teu vídeo é quase todo filmado entre amanheceres e anoiteceres. Porquê? Há também alguma razão para além da estética?
São as alturas em que eu gosto mais de existir, porque são as alturas em que eu me sinto mais viva. Acho que isso deve-se ao facto de eu ficar mesmo hipnotizada com as cores que as coisas têm, e que as pessoas têm. Tem uma poesia tão inerente para mim ver um céu cor de rosa, lilás, e depois um céu azul, e o reflexo que essas cores têm no mundo. É uma presença muito espiritual para mim porque me sinto presente. Sinto-me em harmonia com o planeta. E essa presença para mim, eu sentir-me presente e estar consciente de que estou viva, é uma experiência super espiritual. E eu adoro viver nessa altura, e sentir essas coisas. Para mim é mesmo muito fácil e nada forçado filmar nessa altura, porque são nessas horas em que me sinto mais viva.
6) Há um sentimento de melancolia muito presente neste vídeo-retrato. Mas uma melancolia que parece inquietar e acalmar ao mesmo tempo…
Eu acredito também que a utilização desta paleta de cores, a procura destes amanheceres e anoiteceres, estas transições também são muito simbólicas para uma melancolia ou nostalgia. As cores em si também o são. E eu também o sou. Por isso, na verdade, acho mesmo bonito que o vídeo retrate isso. Não só eu sou assim como nëss o é. Portanto acabou por ser um casamento muito sortudo nesse sentido, porque a minha estética pessoal também retrata o mundo de nëss, e isso foi pura coincidência. E também porque a decisão de filmar nestas alturas e com estas cores foi uma decisão de realização, mas que nëss se identifica muito não só com esse lado nostálgico e melancólico, que é o estar-se vivo, mas com as próprias cores do mundo nessas horas.
Relativamente “à melancolia que parece inquietar e acalmar ao mesmo tempo”: acho que a melancolia e a nostalgia no geral podem ser causadoras de uma grande inquietação, mas ao mesmo tempo existe algum conforto nisso. Especialmente no sentido de nostalgia. Às vezes podemos ter saudades de um momento, de uma altura que sabemos que no fundo também não foi assim tão boa. Mas existe um sentimento muito reconfortante em elevar o passado, elevar momentos e mudá-los na nossa memória e no nosso sentir. Isso é uma obra fascinante da nossa mente.
No fundo, acho que o porquê de esta melancolia parecer reconfortante é porque efectivamente ela o é para mim. E o recurso a essas cores, à super8, ao mar, à natureza, tudo isso é reconforto, tudo isso é melancolia, tudo é nostalgia, mas tudo isso é estar presente. É viver.
7) Mas o que te inspira nesse estado de espírito? É algo intrínseco à tua pessoa, ou algo que procuras também como um espaço para criação?
O estado de espírito em si, de melancolia e nostalgia para mim são diferentes, mas estão muito ligados. Para mim esse estado é quase constante. Não é como se eu entrasse nesse sítio apenas na criação. Claro que há alturas em que estou mais off disso, estou mais ocupada com trabalho não-criativo, em coisas onde tenho de ser mais funcional. Ou posso também estar efetivamente mais só feliz, que acho que é um estado no geral onde eu não costumo estar. O que me inspira no estado de espírito não é propriamente nada, no sentido em que o estado de espírito existe em mim. Portanto não o vou procurar para me inspirar. Ele já existe aqui. Eu faço terapia há alguns anos e é um dado que eu sei sobre mim mesma, que sou mesmo uma pessoa nostálgica, uma pessoa melancólica, mas que apesar disso tenta olhar para si, tenta desconstruir os porquês desta constante inquietude de espírito que muitas vezes leva a uma inquietude de corpo, com muita ansiedade.
Mas neste sentido é na criação e na possibilidade de catarse que eu tento chegar a termos com algumas coisas que eu sinto, tentando torná-las menos escondidas, menos oprimidas pelo meu cérebro. Por isso esse estado de espírito existe em mim, e o que eu faço para conseguir viver com ele é criação.
8) Que voz gostarias de ter (ou que os outros reconhecessem em ti) enquanto realizadora?
Não sei se foi muito óbvio para ti também fazeres estas perguntas e falar em melancolia, nostalgia, nos amanheceres, nas cores. Mas é isso que eu quero, na verdade. Que essa seja a minha voz. Uma voz honesta, sincera. Uma voz que não tem medo de falar sobre traumas, que não tem medo de dizer que na maior parte do tempo não está feliz. Que não tem medo de dizer que é melancólica. Que aborda também esses temas de saúde mental e o que é viver na comunidade queer. Também há bastante privilégio da minha parte, porque na nossa sociedade sou vista como uma pessoa branca, que já só por si tem um privilégio alinhado. E sou uma mulher cis. Claro que também levo com muito preconceito por assumir a minha orientação sexual, mas acredito que existam pessoas que passam por julgamentos bem mais intensos. Acredito que seja muito mais duro para imensas pessoas.
Mas o que eu gostaria de marcar é que sou uma mulher bissexual que quer falar sobre temas que não são falados na sociedade heteronormativa, mas da minha forma mais doce, simples, e ingénua na observação. Ingénua no sentido mais narrativo, talvez. De narrar mesmo as coisas. Gosto muito quando amigos vêem algum filme ou fotografias e me dizem “Ah, Maria, isto é a tua cara, acho que vais adorar”. Normalmente tem muito a ver com toda esta estética que eu gosto e que eu reproduzo também nas minhas coisas, seja fotografia ou filme. E que é precisamente esses momentos de transição de dia para noite e de noite para o dia, que tem as minhas cores favoritas de sempre e que representam mesmo calma para mim. E isso é o que procuro mais neste momento. Calma. E honestamente a calma na criação nem é bem o que me afeta mais. Eu gostava era de ter calma na vida, em geral.
Quero também filmar sobre o que faz sentido para mim, tendo em conta que quero sempre que a minha arte seja relatable. Isso eu procuro, claro. E acho que até é bastante relatable. Não sou de todo uma pessoa de símbolos e de mistério, apesar de adorar esse tipo de artistas. Se calhar sou mais literal, mas de uma forma mais poética. Um literal poética. Estou muito em paz com o meu caminho de realização, que de todo não está alinhado com o que é esperado pelas pessoas do meio, ou colegas, ou whatever.
BIOGRAFIAS
nëss
artista retratado
Orgulhosamente oriundo das Mercês na linha de Sintra e vértice do núcleo duro da família da Troublemaker Records – colectivo-editora cuja actividade muito tem feito por iluminar artistas POC e queer vedados a plataformas de exposição mais amplas -, nëss escancara sem medos todas as fragilidades e anseios da sua identidade não-binária, queer e negra em canções carregadas de gente e vida. Reflexo bem pessoal das suas vivências, que das angústias da depressão e da dúvida procuram vislumbrar a esperança, os limites do perdão, arrepiar caminho.
Maria João Bilro
realização
Não gosta de rótulos (tão-pouco singulares) e acredita que todos nós somos matéria de muitas coisas. tendo de se resumir, assume-se como pessoa criativa com uma grande propensão para a nostalgia visual. colaborou com várias revistas (empire, revista umbigo) escrevendo sobre cinema e, nos últimos, anos tem trabalhado como realizadora e assistente criativa, alternando entre publicidade e ficção (krypton, take it easy).