“Sempre que eu piso um palco, sinto que estou acompanhada por todas essas vozes, todos esses corpos que sonharam aquele momento” – Nádia Yracema
Neste vídeo-retrato realizado por Laís Andrade, a atriz, performer e criadora Nádia Yracema fala-nos do seu corpo-casa, ou corpa (como muitas vezes a chama). Diz levar a palco não só a sua história mas também todas as histórias que se cruzaram no seu caminho e se vincaram no seu corpo, ou corpa, enquanto memórias.
Não tem a pretensão de mudar o mundo, embora queira mudar pequenas coisas. Mas a força dos seus sonhos é tão grande, que tornará a sua voz mais e mais urgente, mais e mais presente.
Esta é a edição 06, Nádia Yracema por Laís Andrade.
Conversa com Laís Andrade

1) Já conhecias a Nádia Yracema, têm aliás trabalhado juntas em vários projetos; foi atriz na tua última curta-metragem. Porque a escolheste aqui enquanto artista retratada?
Sim, conheci a Nádia quando a convidei para ser a atriz da minha última curta-metragem. Já na frase de preparação da curta partilhámos um pouco das nossas histórias de vida e percebi que tínhamos muito em comum. Escolhi a Nádia para este vídeo por ser alguém que me inspira imenso, como pessoa e como artista. Não há uma peça dela que vá ver e que não saia com uma nova perspetiva de algum conceito da vida. Em conversas com ela, também há sempre uma leveza e sinto-me compreendida. Então tive este desejo de partilhar com mais pessoas o talento e a forma de pensar da Nádia.
2) Podes falar-nos um pouco da escolha do cenário? O porquê das ruínas e do palco? O que significam aquelas casas abandonadas no contexto do teu vídeo e o vazio do palco?
Em várias obras da Nádia e também em conversas que tivemos, surgiu muitas vezes o conceito do corpo enquanto casa. O corpo enquanto local que habitamos, independentemente do país ou da cidade onde estamos, principalmente por sermos pessoas migrantes. Um corpo que pode ter sofrido violências, mas do qual temos de cuidar e nutrir. Escolhi aquelas casas por estarem ali no meio da natureza, com as paredes abertas ao mundo. Abandonadas e destruídas por alguém, mas com potencial para muita beleza. Quis trabalhar o corpo da Nádia nesse cenário como uma planta em fotossíntese, jogando com o desenho de luz do sol. Também decidi gravar na Ponta dos Corvos por fazer parte da zona do Seixal, onde eu vivo e onde viveu também a Nádia quando chegou a Portugal.
Em relação ao palco, começa por ser o lugar onde a Nádia trabalha maioritariamente, claro. Mas também pensei nele como o interior da artista, em oposição às paisagens exteriores. E optei pelo palco vazio para podermos jogar o máximo possível com a luz. Pretendia fazer uma ligação entre a luz do teatro e a luz do sol do exterior. O sol como as informações que a artista recebe do mundo exterior, as histórias que ouve, as vivências que tem, e a luz no interior como a forma como isso é trabalhado na mente com o restante do processo artístico, transformando-se em arte.
3) O teu vídeo-retrato é o único, até agora, com uma paleta de cores quentes: amarelos, castanhos, verdes-amarelados secos. Foi uma curiosidade que notámos ao escolher o fotograma para a homepage do site. Essa escolha foi propositada? E se sim que relação tem para ti com a história da Nádia?
Sim, foi proposital. Os amarelos fazem parte daquele que é centro deste vídeo, que é o sol. Tanto o verdadeiro sol, quanto o que tentei recriar dentro do teatro. Os castanhos, pela cor da pele da Nádia, tendo em conta o quanto a negritude faz parte da sua história e da sua arte. E os verdes são das plantas, desta ideia que já mencionei do corpo em fotossíntese. Também chegamos a gravar uma parte que depois não entrou no corte final mas que tinha precisamente a ver com esta ideia do corpo e da alma enquanto uma planta que tem de ser nutrida. E pegando nestes elementos que se mostraram essenciais na história da Nádia desde a primeira conversa, montei esta paleta de amarelos, laranjas, castanhos e verde seco, desde o primeiro guião. O facto de serem cores quentes tem muito a ver com a ideia que queria passar da arte enquanto conforto. E para mim, e penso que também para a Nádia, o conforto remete para o calor, para as origens, para o vapor de um bom prato de comida quente.
4) Outra colaboração que tens mantido é com a diretora de fotografia deste vídeo, Ana Mariz. Qual a tua relação com o trabalho da fotografia na criação da tua linguagem? E como é, ou como foi, esse diálogo de construção com a Ana?
Sim, já conhecia a Ana. É uma pessoa pela qual sou muito grata e que me tem ajudado muito no meu percurso. Mas foi a primeira vez que trabalhou comigo como diretora de fotografia e fiquei muito feliz porque ela tem feito um trabalho incrível nessa área. Penso que correu muito bem, as nossas ideias estavam em sintonia. Ela ajudou-me a passar para o técnico e concreto algumas fantasias que tinha na cabeça. Ela conseguiu trabalhar a luz exatamente como eu queria e também de formas que eu nem sabia que queria. Trouxe a sua experiência para as minhas ideias e também me desafiou a experimentar coisas novas. É uma colaboração que ficou ainda mais forte e que pretendo certamente continuar.
5) Enquanto mulher negra, não branca, imigrante, filha também de imigrantes, o quão te identificas com as palavras da Nádia neste vídeo-retrato? Que, aliás, foram escolhidas por ti, dentro das várias que ela partilhou.
Identifico-me com muitos aspetos. Inclusive, não foi um trabalho nada fácil selecionar a narração deste vídeo. Tinha tido com a Nádia uma conversa de mais de uma hora e a história dela tinha tantas coisas interessantes que queria incluir. Mas no fim acabei por decidir por aquilo que mais ressoava comigo e que eu sabia que também ia ressoar com outras pessoas. Identifico-me com o que ela começa por dizer no vídeo, sobre sentir muitas vezes que não pertence a Portugal mas que também já não pertence ao país de origem (no meu caso ao Brasil, no dela, Angola). E também a esta ideia final de que faço arte pelos que foram silenciados antes de mim e também para quebrar ciclos para os que ainda vêm no futuro.
6) Os teus trabalhos têm sido dentro da temática da imigração, sobre várias dificuldades e todo o peso do que é ser imigrante. Achas que estas histórias e estas personagens deveriam ser mais e melhor representadas no cinema?
Claro. Acho que o cinema português ainda está a começar a falar sobre estes assuntos e que ainda tem muitas dificuldades em fazê-lo. São assuntos que abrem muitas feridas naquela que é a história portuguesa e o que ainda permanece do colonialismo no sistema. Acho que a xenofobia, e exemplifico com os brasileiros, principalmente as mulheres, ainda é algo explícito, mesmo dentro de bolhas que se dizem mais progressistas. Portugal tem uma dívida enorme para com os países que colonizou. Portugal tem de aceitar que é um país multicultural e multiracial. E o acolhimento dos migrantes tem de deixar de ser só para os que são brancos e ricos. E no cinema é preciso dar oportunidade, plataforma e sobretudo financiamento aos artistas migrantes, para que possam contar as suas histórias e as das suas comunidades com o sua própria sensibilidade e menos voyeurismo.
7) O meio audiovisual português é ainda muito dominado por homens. Sentes que este paradigma está a mudar? Ou que serão precisas ainda outras estratégias para que efetivamente se sinta uma diferença a curto/médio prazo?
Sim, sinto que está a mudar mas tenho receio que seja só numa bolha. Numa bolha de festivais onde realizadoras ganham prémios. Mas que o cinema e televisão mais comercias ainda são muito dominados por homens. Ou seja, o dinheiro ainda está mais no masculino, tal como em muitas outras profissões. Dentro das áreas técnicas do cinema também há ainda uma predominância muito masculina e ainda há ambientes de set machistas. Acho que têm de ser tomadas medidas específicas em relação a estas desigualdades, criando apoios à criação que sejam específicos para mulheres, pessoas racializadas, migrantes, LGBTQIA+, periféricos, etc. E que estes apoios sejam atribuídos efetivamente a pessoas iniciantes e não só a artistas já estabelecidas no meio. Há muitas histórias belas que precisam de ser contadas e, infelizmente, a arte sozinha não paga as contas, tem de ser monetizada.
8) Que voz queres ter (ou que as pessoas reconheçam em ti) enquanto realizadora/autora?
De facto os meus últimos e os meus futuros trabalhos têm andando sempre à volta do tema da migração. Pretendo continuar a explorar este tema porque acho que faz muito parte de mim. De uma parte que reprimi durante muito tempo. E que sinto que também ainda é reprimida na sociedade portuguesa, e que precisa de um voz. Então espero conseguir ser uma voz para as pessoas como eu, mulheres, migrantes, racializadas, de famílias pobres. E espero conseguir tratar estes temas além do sofrimento, mas também com leveza e esperança. Representar estas pessoas em todas as suas mais complexas dimensões.
BIOGRAFIAS
Nádia Yracema
artista retratada
Nasceu a 3 de Julho em Luanda, Angola. Inicia a sua formação e atividade no teatro Universitário, TEUC. Paralelamente frequenta a licenciatura de Direito na Universidade de Coimbra. Ingressa em 2012 na ESTC, Ramo atores. Após conclusão da formação académica manteve uma participação ativa em vários organismos sociais que promovem o trabalho colaborativo nas áreas do cinema, teatro e performance. Em 2018 integra o projeto internacional École de Maîtres. Desde então tem trabalhado como atriz, performer e co-criadora em espectáculos como “Aurora Negra”, “Outra Língua” e “Cosmos”. Integra o projeto musical “Samba de Guerrilha” em conjunto com o músico brasileiro Luca Argel.
Laís Andrade
realização
Laís Andrade nasceu em 1997, no Brasil, e migrou para Portugal aos quatro anos. Em 2020, concluiu o Mestrado em Cinema pela Universidade da Beira Interior. Como projeto final, escreveu e realizou “Flor de Estufa” (2021), uma curta-metragem premiada, sobre uma mulher migrante que trabalha em plantações ilegais, baseada em histórias da sua comunidade. No final de 2021, realizou a curta “Ganha-Pão” (2021) na residência Cineluso, em Bruxelas, sobre quatro histórias de pessoas migrantes. Está atualmente a trabalhar no seu próximo filme, baseado na sua própria experiência de migração, na infância. Também trabalha como guionista, anotadora e assistente de realização.